Senhor Presidente da
Academia Barra-Cordense de Letras, Acadêmico Fernando Eurico Lopes Arruda, na
pessoa de quem saúdo e cumprimento as Senhoras e os Senhores Acadêmicos;
Autoridades que prestigiam esta solenidade;
Digníssimo público aqui presente, Boa noite!
“Tudo tem o seu tempo
determinado”, segundo declara o rei Salomão no Eclesiastes. E, embora não
acredite em destino pré-estabelecido, senão aquele passível de transformação,
que construímos a partir das circunstâncias que se nos apresentam, aprouve a
Deus que este fosse meu tempo de ingressar nesta Augusta Casa, por decisão
unânime de seus Ilustres Membros. Desvaneço-me pela preferência que tivestes
por mim, fazendo-me merecedor de tão prematura promoção à imortalidade, sendo
eu ainda o mais novel aspirante às Letras de vossas fileiras. Faço-me,
portanto, devedor de todos vós, caríssimos confrades, dentre os quais cito o
presidente deste colendo Cenáculo, Dr. Eurico Arruda, Tâmara Pinto, Mário
Hélder, Álvaro Braga, Heider Moraes e Sebastião Bonfim, que mais de perto
estiveram conosco, apoiando-me em palavra e exemplo.
A partir de hoje terei a honra de compor o restrito número de
homens e mulheres que se propõem a reverenciar o passado, no afã de construir o
amanhã da cultura barra-cordense. Em assim sendo, achego-me a vós, nobres
confrades, despido de qualquer pedantismo ou orgulho meritório, plenamente
consciente de meu pesado encargo e responsabilidade, vez que ora me faço
titular da Cadeira nº 2, fundada e precedida pelo maior dentre os idealizadores
deste sodalício, Raimundo Nonato Ribeiro da Silva, nosso saudoso Mestre Nonato
Silva.
Em 1929, chegava a esta cidade, vindo da Itália, sua grande Pátria,
Frei Adriano Ceresoli de Zânica. Imediatamente organizou trabalho eficiente e
operoso em prol do enriquecimento material, moral e educacional da terra que
vinha servir. Entre os benefícios advindos desse esforço a que se entregou
religiosamente, no qual empenhou todo o seu nobre caráter, toda uma invencível
dedicação, figura a banda de música São Francisco. Filarmônica que teve
apreciável importância na vida social, cívica e religiosa desta cidade, e dela,
vários elementos emigraram para dentro e fora do Estado, onde, em instituições
congêneres, experimentaram pelas suas aptidões, destacado apreço.
Frei Adriano
fez-se um dos melhores amigos de Barra do Corda, porque aliou a esse trabalho,
zelo esmerado de sacerdote pela paróquia que lhe fora confiada. Dez anos
depois, isto é, em 1939, volta à sua terra natal, para revê-la no aconchego da
família. Não ia bem de saúde e levava consigo, reservada, a ideia de, ao
regressar para o Brasil, trazer à sua nunca esquecida Barra do Corda e para seu
povo, a quem dava as melhores provas do seu amor e de sua estima paternais,
surpreendente novidade. A Segunda Guerra Mundial o apanhou na Itália, de onde
não mais pôde retirar-se, causando-lhe grandes embaraços e prejuízos, que
refletiram em cheio, no que tanto já havia feito pela nossa terra. No entanto,
ainda conseguiu salvar, daquela terrível calamidade, materiais e objetos
preciosos para a projetada Igreja que pretendia, dentro de normas e estilos
novos, construir para os barra-cordenses, e para outras importantes obras e
instituições que constam do seu longo programa de realizações. Regressando, em
setembro de 1946, à Barra do Corda, entusiástica e imponente, como a de grande
soldado que à pátria retorna empunhando a bandeira da vitória, foi a sua
chegada.
Para a edificação da atual Igreja Matriz, Frei Adriano trouxe algo
em torno de 9 toneladas de mármore e mosaicos de preciosos esmaltes de Veneza,
um concerto moderno de cinco pesados sinos de apreciável valor, 12 vitrais
artísticos para janelas, vistoso relógio de torre, várias obras de escultura,
uma Via-Sacra, de bronze, vasos e finos paramentos sacros. Para a banda de
música, trouxe 53 novos instrumentos, e para os músicos, bonés, cinturões e até
fardamento. Durante vários dias seguidos, o povo espontaneamente, acompanhado
pela banda São Francisco, transportou, da rampa ao Convento franciscano, para
mais de duzentas pesadas e grandes caixas, que acondicionavam todo o precioso
material e objetos, trazidos por Frei Adriano. Este fato foi, não há dúvida, o
ponto central da fé dos barra-cordenses e do apreço que tiveram o penoso
sacrifício, o inaudito esforço com que o destemido vigário conseguiu aportar
nesta cidade tão apreciável acervo religioso.
Magro, agitado, olhar vivo e penetrante, dinâmico e incansável, de
sólida formação teológica, além da cultura geral, foi um sacerdote com bagagem
intelectual suficiente e em dia com os problemas que lhe diziam respeito. Foi
um missionário que soube valorizar o seu apostolado quanto aos planos, e quanto
aos métodos. Inteligência cultivada, espírito empreendedor. Temperamento
combativo, enfrentou com desassombro adversários irreverentes e lutou com
perseverança contra acontecimentos imprevistos. Lutou e venceu.
Caríssimos confrades, senhoras e senhores, ao se abrirem os umbrais
desta Academia, para que eu nela pudesse adentrar, como hoje o faço, sob a
iluminação festiva desta noite solene, asseguraram-me algumas pessoas da
desenvoltura que eu teria para tomar assento à Cadeira nº 2, com os incontáveis
lauréis de que faz credor os dotes intelectuais do meu predecessor. Vi-me então
prontamente embaraçado ante tal expectativa. E mais ainda cresceu-me a responsabilidade,
quando passei a ler grande parte do acervo que nos legou nosso mui venerável
mestre Nonato Silva. Confesso que, ao fazê-lo, já nem tinha em vista esta fala,
pois cuido ser relevante a incumbência de enaltecer meu antecessor, sobre cuja
personalidade pretendo ainda deter-me.
Não fui, confesso, um íntimo do mestre. Eram diversas as nossas
ocupações e preocupações, assim como distintas são as gerações a que
pertencemos, e não me atreveria aqui acrescentar quaisquer elementos aos
encômios que já lhe prestaram os que tiveram a honra do seu convívio, entre os
quais alguns desta veneranda assembleia, sem correr o risco de, achando-me
pioneiro, palmilhar território comum, escrevendo sobre escritura alheia, como
num palimpsesto.
Nada disso, entretanto, representou obstáculo para que minha poesia
e eu tivéssemos a satisfação de conhecê-lo. Digo minha poesia, porque foi ela
minha precursora, a que viabilizou o encontro, intermediado pelo jornalista
Heider Moraes. Pedi-lhe, em fins de 2011, uma apreciação ao meu livro “Bodas de
Pedra” e, em pouco tempo recebi três laudas datilografadas e uma solene
advertência de nosso intermediário: “Quando você digitar o texto, não faça
quaisquer correções, o professor é um ferrenho crítico do corretor ortográfico
do Word”. É inquestionável que a Língua Portuguesa teve em Nonato Silva, um de
seus mais zelosos atalaias. Prova-nos obras tais como: “História da Ortografia
da Língua Portuguesa”, “História da Lexicografia da Língua Portuguesa”, “Língua
Brasileira”, “O Hífen nos Compostos Prefixais”, “Origem da Língua Brasileira” e
“Agressões à Língua Portuguesa”.
Portanto, se não há, de minha parte, por pura escassez de domínio
sobre as chamadas Letras Neolatinas – Português, Italiano, Francês, Espanhol e
Romeno, maiores afinidades com o mestre Nonato Silva, existem, não obstante,
pontos em que nos identificamos. Somos os dois amantes das Línguas Clássicas,
ambos igualmente motivados por questões teológicas. Ele, mais especificamente a
latinidade de Virgílio e Petrarca; eu, o grego. Não o grego de Homero ou
Platão, mas o do povo comum, dos mercadores ambulantes, o koinê, com que o Novo
Testamento de nosso Senhor foi escrito, e do qual extraí, do original, o
seguinte verso que colige toda a sua mensagem: “ὁ μὴ ἀγαπῶν οὐκ ἔγνω τὸν θεόν, ὅτι ὁ θεὸς ἀγάπη ἐστίν.” “Aquele
que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor” (1 Jo 4:8).
A propósito, a Bíblia foi o livro-texto de meu
predecessor, o qual muito amou e tão largamente difundiu, em verbo e em vida,
desde quando ordenou-se padre capuchinho, em 30 de setembro de 1945, quando
passou a atender pelo onomástico Frei Paulo de Barra do Corda, até o dia em que
conheceu Aimée, sua futura esposa, pois preferiu deixar a batina a viver em
duplicidade, o que não lhe permitiam o caráter
ético e o zelo cristão, pois, como escreveu depois: “O clarão de Tua
luz/ impede-me blasfemar a Tua Cruz”.
Mas, embora o tenham, merecidamente, como o mais
laureado homem que este solo já produziu, um dos fundadores e o primeiro
presidente desta Casa de Maranhão Sobrinho, o primeiro repórter da construção e
desenvolvimento de Brasília, o sacerdote, o filólogo, o filósofo, o maestro, o
jornalista, o professor, tem Nonato Silva também o seu mérito individual como
poeta. Podemos encontrar em sua bagagem poética alguns versos líricos, tão
impregnados de despretenciosa beleza, que é impossível não lhe reconhecer as qualidades de autêntico poeta. É o caso do
soneto “A Velha Cajazeira”:
Nada se sabe quando ela nasceu,
Esparzindo beleza em toda parte,
Alimentando pássaros – xexéu,
Aracuãs, jacus, com que reparte.
Velho templo sagrado que viveu
Da natureza o brilho de sua arte,
Tal qual Vênus, no seu grande apogeu,
Que te abençôa, a muitos frutos dar-te.
Em teus frondosos galhos os macacos
Saltam, pulam, derrubam as amêndoas
De que se fazem boas semberebas.
A criançada ajunta cheios sacos
Para alimento das pacas ingênuas,
Cutias, caititus e gordos pebas.
Nonato Silva, a despeito de todo o seu
privilegiado patrimônio intelectual, reconhecia o processo dialético a que se
achava imersa sua existência, conforme pode-se verificar nos versos descritivos
de “Quem Sou Eu”, poema tardio que se pretende autobiográfico:
“Uma nuvem. /Mais outra, /Pesada, /Se avista /No
túrgico ocaso. /Um relâmpago. /Mais outro /Fuzila no espaço. /Um trovão. /Mais
outro, /Violento, reboa. /Depois, /A chuva. /A enxurrada /Desce aos
borbotões. /Sobem /Os cupins de asa. /As
formigas, também. /Os bem-te-vis /Os comem. /O tempo fechado /Abre-se ligeiramente.”
Que a morte põe um fim à maratona da vida ele o desmente com as
próprias palavras que deixou inscritas, numa estrofe que bem poderia ser sua
mais autêntica profissão de fé:
“Meu destino é subir, crescer, criar
Asas para a Ti voar.”
Concluo meu
pronunciamento notificando o atraso editorial que impossibilitou a chegada, a
tempo, de meu novo livro, “Rio Conjugal”, para lançamento esta noite, o que era
meu propósito. No entanto, reproduzo aqui um fragmento do poema para antegozo
dos que por ele forem de alguma forma tocados:
“... não é a forma como o cordamearinha-se no mearim a mesma que me
emaranho no maranhão. Muitas são as águas que nos atravessam no curso da vida,
arrastando a prole do sonho, carnavais, mesuras e formosuras. Nenhuma mata
ciliar sustenta mais que seu próprio verde. Quantas garrafas vazias vêm à tona
revelando festas submersas? Chego a pensar que o cordino emerge desses porões,
desses ingás à míngua, dessas garrafas que se esvaziam na noite. Quando me
entendi por gente, perdi o quanto de mim era alento e o quanto era rio. Nunca fui um bom colecionador de funduras,
nem de sal. Salto da ponte como se a vida fosse ontem. Dentro e fora algo me
devora, devora minha aurora, minha flora, meu agora e o que me devora. Algo,
alga alguma, algum gólgota. Esse gene aborígene que disfarço enquanto passo,
enquanto traço o conduzo como um troço, uma tribo no estribilho do meu verso,
um gene que geme, que ginga em minha garganta, da sílaba à sola, do solo ao
solilóquio. Nunca fui de pronunciar rio; preferi antes o minuto de silêncio.
Sempre dei asa à pausa. Tudo o que digo cabe só no meu umbigo. Rio é passar,
performance do espaço, quando o tempo é puro aço. O rio passa, eu passeio...
Ainda passará, quando eu for passarinho.”
Muito obrigado!
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